A terapia celular é um campo novo na prática médica. Conceitualmente, envolve a substituição de células ou tecidos lesados por equivalentes saudáveis. A prática ganhou força e notoriedade com a descoberta de diferentes tipos e fontes de células-tronco, que levaram a investimento maciço na prospecção dessas células, e suas aplicações em protocolos terapêuticos para doenças degenerativas, doenças isquêmicas, doenças traumáticas, e até mesmo na medicina estética.
“Todos os seres vivos são formados por elementos microscópicos denominados células. Cada célula do nosso corpo é a menor unidade viva, e cada uma adquire ao longo da formação do indivíduo uma especialização que permite que exerça uma função específica. Por exemplo, as células vermelhas do sangue, cujo nome são hemácias ou eritrócitos, adquirem uma forma bicôncava cheia de moléculas capazes de carregar oxigênio por todo o organismo; as células da pele, como outro exemplo de especialização, adquirem uma forma pavimentosa, como de ladrilhos, com uma grande adesão entre si. Mais do que isso, se especializam tanto que se impregnam de uma proteína que as tornam impermeáveis (ceratina), chegando a morrer e formar uma camada de queratina, mais ou menos espessa dependendo da região que pavimentam.
No sistema nervoso, temos células super especializadas como os neurônios. Essas células são especializadas na geração e transmissão de impulsos elétricos, que controlam a função de outras células, como as células musculares, permitindo que sob vontade própria possamos fechar a mão ou mexer uma perna. Nesse sentido, a especialização é acompanhada pela forma, com estrutura que favorece a conexão com outras células (projeções das membranas chamadas distritos) e uma estrutura para mandar um sinal à outra célula (axônio) que pode ser bastante longo. Mas o nosso corpo e suas células não estão prontamente na mesma relação de uma casa com seus tijolos. As células se organizam em tecidos, conjuntos de células com função e forma em comum, que são dinâmicos, ou seja, estão em constante renovação, mas em velocidades diferentes ou somente em algum momento da vida de um indivíduo.
As células vermelhas do sangue (eritrócitos), por exemplo, são tão especializadas que não tem mais núcleo, estrutura que contém o ADN de um indivíduo e é vital para a duplicação da célula. Essa célula, logo, não duplica, e tem uma “vida útil” de aproximadamente 120 dias. Nossa pele, por exemplo, está constantemente em “descamação”, com as camadas mais superficiais sendo substituídas pelas células mais profundas que vão ocupando posições das primeiras, acompanhadas de um grau de especialização crescente. Os neurônios, por sua vez, são células que estão constantemente dormentes, e não proliferam em condições normais. Mas, se existe perda, como acontece a reposição normal dessas células? A resposta está em duas palavras: células-tronco. Há muito tempo se preconiza a existência de células-tronco. Essas são células raras, que apresentam como características a capacidade de se auto-renovarem, ou seja, duplicarem gerando duas células iguais, e capacidade de diferenciação, ou seja, são “especializáveis”.
Muitos tecidos apresentam células-tronco. A maior e com maior potencial de todos é o zigoto, fruto da fusão entre os gametas masculino (espermatozóide) e feminino (oócito), pois é capaz de dar origem a um embrião e anexos embrionários. Na medula óssea, temos as células-tronco hematopoiéticas. Essas células são raras e permanecem a maior parte do tempo dormentes, mas são capazes de duplicar infinitamente e especializarem-se nas diferentes células do sangue, como as células vermelhas (eritrócitos). Assim, ao passo que as células “velhas”, com mais de 120 dias, são destruídas, mais células são geradas. Em condições normais, os níveis e concentrações de células são mantidos constantes. Mais do que isso, se existe uma demanda por mais células, como por exemplo, numa hemorragia, ou quando a pessoa passa a morar em ambientes de maior altitude, onde temos pouca tensão de oxigênio, as células-tronco produzem uma maior quantidade de eritrócitos. O mesmo acontece quando cortamos a pele. Um corte leve e moderado, controlado o sangramento e a resposta inflamatória imediata (aguda), as camadas de células da pele, que contém as células-tronco desse tecido, se multiplicam para cobrir a área em descontinuidade, formando uma cicatriz. Já no sistema nervoso, apesar de já ter sido descrito células-tronco neuronais, essas não apresentam tanta capacidade de proliferação, o que leva a termos lesões mais graves nesse tecido, podendo gerar paralisias de membros em lesões traumáticas.
A terapia celular é um campo novo na prática médica. Conceitualmente, envolve a substituição de células ou tecidos lesados por equivalentes saudáveis. A prática ganhou força e notoriedade com a descoberta de diferentes tipos e fontes de células-tronco, que levaram a investimento maciço na prospecção dessas células, e suas aplicações em protocolos terapêuticos para doenças degenerativas, doenças isquêmicas, doenças traumáticas, e até mesmo na medicina estética. Conceitualmente a terapia celular é uma prática antiga. Quando se faz uma transfusão sanguínea estamos fazendo exatamente o que preconiza a terapia celular: repondo células funcionais a um tecido carente das mesmas, no caso, o sangue. O grande “boom” da terapia celular nos últimos anos vem do advento do uso das células-tronco. Nesse sentido, o transplante de medula óssea é o tipo de terapia celular mais antigo já descrito, com uma experiência mundial de mais de 60 anos e a carga de um Prêmio Nobel os seus pioneiros. Neste, a medula de um paciente defeituosa ou destruída no fogo cruzado do tratamento de um câncer pela quimioterapia e radioterapia é substituída por uma medula óssea funcional, podendo ser a do próprio paciente, previamente preservada em baixas temperaturas (criopreservação) ou de um doador imunologicamente compatível.
Com o tempo, outras fontes de células-tronco hematopoiéticas foram estabelecidas para uso clínico: o sangue periférico mobilizado, onde através de medicações as células-tronco podem ser coletadas na pela veia periférica, e o sangue de cordão umbilical e placentário, que normalmente seria um material destinado a descarte hospitalar. Essas são terapias que usam as chamadas células-tronco ditas adultas, que se contrapõe ao uso das células-tronco embrionárias, cuja utilidade apresenta barreiras éticas de difícil transposição. Mais recentemente, outras células-tronco têm sido identificadas em diferentes órgãos e tecidos, como mama, coração, cérebro, músculo esquelético, osso, etc. A medula óssea é particularmente interessante. Nela além da célula-tronco hematopoiética, já foi descrita a presença de outro tipo de célula-tronco, a célula-tronco mesenquimal não-hematopoiética. Esse tipo de célula-tronco apresenta potencial para especializar-se em tecido ósseo, cartilaginoso, e adiposo, ou seja seria capaz de produzir osso, cartilagem e gordura.
Alguns estudos indicam um potencial mais amplo enquanto outros um mais restrito, mas isso varia dependendo do grupo de estudo e do critério para classificação de uma determinada população de células. Muitas são as expectativas a respeito do uso de células-tronco em terapia celular. Estudos demonstrando efeitos positivos no uso de células mesenquimais em doenças imunológicas, reumáticas e auto-imunes vem a trazer expectativa grande no uso dessas células em novas terapias. Atualmente o transplante de medula óssea é a única modalidade de terapia celular aprovada e consolidada cientificamente e com regulamentação. O uso de células-tronco embrionárias só é permitido para fins de pesquisa e desenvolvimento, mas esse tipo de célula vem perdendo espaço para as células-tronco pluripotentes induzidas (iPS cells), onde células diferenciadas são induzidas a desespecialização pela introdução de genes específicos, para posterior reespecialização.
De qualquer forma, a próxima década deve fazer surgir uma nova gama de ferramentas terapêuticas utilizando células-tronco para diferentes campos da medicina, possibilitando alteração no curso de tratamento de diferentes doenças e uma melhor qualidade de vida.”
Dr. Flávio Henrique Paraguassú Braga